sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Testemunho do Pe. Gervásio no 3º Congresso Missionário Nacional em Palmas


CAMINHADA MISSIONÁRIA DO BRASIL:
MEMÓRIA, DESAFIOS E ESPERANÇAS
Testemunho no Congresso Missionário Nacional [Palmas-TO, 14.07.2012]
                                               [Padre Gervásio F. de Queiroga - Cajazeiras - PB]
            1. Foi-me surpresa ter de apresentar aqui minha vivência missionária, resumindo, em quinze minutos, um longo andar de mais de sessenta anos. Em termos de realização, não tenho muito o que dizer. Mas, farei memória da caminhada missionária do Brasil, como a vivi e como a vejo, com seus desafios e esperanças.
            2. Entendo aqui Missão, antes de tudo, no seu sentido primeiro e próprio, como a entende o Concílio Vaticano II em Lumen Gentium e “Ad Gentes”, como a expõe a encíclica Redemptoris Missio; Missão, como envio para anunciar o Evangelho da salvação aos que ainda não acolheram a Cristo; Missão que a Igreja realiza, através dos tempos, como mandou Jesus: “Ide pelo mundo inteiro, pregai o Evangelho a toda criatura; quem crer e for batizado, será salvo”... (Mc 16, 15-16). Chamam-se Missões outras atividades, como as missões populares, enquanto continuam e aprofundam esta primeira evangelização.
            3. Tomei consciência da Missão “ad gentes” só no seminário, com a realização das Campanhas Missionárias, e assinando revistas missionárias. A formação recebida dos jesuítas, discípulos de Santo Inácio e de Francisco Xavier, e o fascínio por Santa Teresinha, marcaram-me com espiritualidades profundamente missionárias “ad gentes”.
            4. Incisivos foram também os dez anos de estudos em Roma, num ambiente universalista, com gente e colegas de todos os continentes, nas ruas ou na Universidade, nas celebrações ou no esporte. A encíclica Fidei donum, em 1957, na qual Pio XII corresponsabilizou o episcopado mundial com o anúncio do Evangelho na África, abriu para nós nova perspectiva missionária.
            5. Ainda na década de 1950, acompanhei de perto, em Roma, a realidade dramática do após-guerra na Europa, com a perseguição religiosa nos países comunistas; bem como, na Ásia, a tragédia das guerras e perseguições aos missionários na China e no Vietnam. Era a abertura para o Leste e o Extremo Oriente. Tive também a oportunidade, sendo seminarista, de breve contato com o continente africano, passando por Dakar - Senegal, o que me acendeu a paixão pela África e o desejo de nela realizar a vocação missionária.
            6. Ordenado sacerdote em 1961, vivi com fervor a preparação e a realização do Concílio Vaticano II. Foram banhos de catolicidade missionária acompanhar aqueles eventos, com todos os Bispos de todos os continentes, acolher a doutrina conciliar da corresponsabilidade eclesial e universalidade da salvação, da abertura ao mundo dos homens e do respeito a todas as culturas, entrar na perspectiva missionária de Lumen Gentium e “Ad Gentes”, reassumidas depois pela Evangelii Nuntiandi  de Paulo VI.
            7. Durante e após o Concílio, a Igreja do Brasil estava atenta aos desafios políticos e sociais daquele turbulento momento histórico, às carências próprias e à necessidade de adequação aos tempos e às diretrizes do Concílio. Ela começou então uma fase polivalente de renovação, com a implantação da pastoral de conjunto e planejamento em todos os níveis. Foi uma época de grandes sucessos, mas também, de sérias limitações; sucessos e limitações que marcaram a caminhada missionária.
            Destaquemos alguns pontos.
            8. As missões populares, ultrapassadas nos métodos e conteúdos pela renovação conciliar, vão sendo deixadas de lado. Junto com seu ocaso, houve também o declínio da dimensão missionária “ad gentes”, em contraste com a vitalidade da renovação eclesial.
            9. As urgências “ad intra” daquele período fizeram-nos permanecer na tradicional carência de dinamismo missionário “ad extra”. Acostumados, por mais de quatro séculos, a mamar nas tetas da grande Mãe Igreja, éramos pedintes e recebedores crônicos de recursos e pessoal apostólico de outras nações, recebendo, sem repartir com outras áreas do mundo, o dom da fé e o serviço da caridade. Tal tendência acentuou-se no pós-concílio. O Brasil, com quase meio milênio de fé católica, continuava sendo ponto de chegada, não ponto de partida da Missão.
            10. Apesar da doutrina conciliar de abertura universal, houve, pois, maior inflexão da nossa Igreja sobre si mesma, para dentro de seus problemas e contemplação de seus sucessos de renovação, tantas vezes elogiados. Ficamos qual adolescente no espelho, encantada pela própria beleza, mimada pelos seus admiradores, mas, quase esquecida da realidade do universo eclesial, pouco sensível, apesar do projeto Igrejas-Irmãs, às necessidades das outras Igrejas e das regiões não evangelizadas. Salvaram-nos do isolamento continental as belas realizações de Medellin e de Puebla, com influência determinante da Igreja do Brasil. Nelas, contudo, a Missão sem-fronteiras teve pouca relevância.
            11. Viveu-se também, no pós-Concílio, uma séria ambiguidade, sobre a natureza da Missão. Os termos “Missão”, “missões” e “missionários”, primeiro, foram quase esquecidos, saíram de circulação; depois, entraram na moda, usados para tudo, ampliados e inflados, quais balões de borracha, que, a custa de se expandirem, correm o risco de explodir. Pois, se tudo é Missão e se todos já somos missionários, parece que Missão é qualquer coisa, já que acontece em tudo e em todo lugar. Deu-se a perda de ênfase dos termos e o esvaziamento da própria natureza da Missão e da vocação missionária.
            12. Inquietava também não termos ainda uma Sociedade Missionária assumida pela CNBB, como seu instrumento de envio além-fronteiras e de acompanhamento dos missionários brasileiros. No entanto, paradoxalmente, países de baixíssima densidade católica, considerados territórios de Missão, como Índia, Japão, Coréia, Nigéria, tinham sua Sociedade Missionária ou enviavam missionários para o Brasil, o país com o maior número de católicos no mundo.
            13. Angustiava igualmente a consciência da dívida histórica que temos com a África, terra-mãe ancestral de tantos milhões de brasileiros, uma de nossas matrizes culturais, a quem em retorno não demos até agora, senão em pequena parte, o dom da fé em Cristo Salvador e o serviço da caridade fraterna.
            14. Trabalhando na CNBB, recebi, na década de 1980, o grande impacto da descoberta da Amazônia. Que maravilha e que desafio! Mas, quão chocante foi perceber que esta imensa região do Brasil era atendida, na sua maior parte, por religiosos europeus e norte-americanos. Aos indígenas e ribeirinhos, nas cidades e nas aldeias, o Evangelho era pregado e os mistérios da fé eram celebrados com sotaque estrangeiro. Que bonito! Mas, que triste! Onde estavam os brasileiros, para somarem seus esforços com os generosos missionários do exterior? Isto acontecia, apesar das reuniões e documentos do nosso episcopado sobre as questões dramáticas da Amazônia, desde julho de 1952, no Congresso Eucarístico de Manaus, ou em Santarém, em 1972, e apesar de seus heróis e mártires, dos exemplos e clamores de seus Pastores.
            15. Com alegria percebemos, porém, que está crescendo e se fortalecendo a consciência missionária da Igreja no Brasil e disto é grande prova este Congresso Missionário Nacional, em Palmas. De fato:
            a) a Amazônia já consegue sensibilizar, receber apoios, ser uma preocupação permanente da CNBB e da CRB;
            b) alguns Regionais da CNBB e algumas dioceses já têm projetos missionários “ad gentes” e para a Amazônia;
            c) as Campanhas Missionárias vão recebendo mais adesão, ano a ano;
            d) a Infância Missionária e a Juventude Missionária já estão presentes em todo o território nacional;
            e) a União Missionária já sensibiliza seminaristas e sacerdotes;
            f) as santas missões populares tomaram novo impulso e novas formas em todo o Brasil;
            g) muitas Igrejas já fazem passos relevantes na linha da missionariedade interna, dentro ainda de suas fronteiras, mas, já para os outros, para os distantes, por uma evangelização libertadora, dando atenção a regiões ou situações sócio-culturais pouco evangelizadas, como os indígenas, os quilombolas, os camponeses e operários, os moradores de rua, os drogados, os encarcerados.
            16. Servindo na CNBB, por 20 anos, acompanhei de perto os esforços dos Padres Caietano Maiello, Franco Masserdotti, Sávio Corinaldesi, João Panazzolo, Daniel Lagni, Ernanne Pinheiro, Stefano Raschietti e de outros que, no inverno missionário do primeiro pós-Concílio, ou depois, não deixaram apagar-se o facho da Missão “sem-fronteiras”, organizaram o CCM, dinamizaram as POM e o COMINA, modernizaram a Campanha Missionária.
17. Mas, as sombras perduram:
            a) Quantas das 275 Igrejas particulares do Brasil têm enviado e estão acompanhando membros do seu clero ou do seu laicato, como missionários para “além-fronteiras” ou para nossa Amazônia?
            b) Em quais seminários, casas de formação, comunidades religiosas, colégios, faculdades católicas a dimensão missionária incide realmente na formação e na prática, a campanha anual das Missões faz parte do planejamento e se realiza com entusiasmo?
            c) Quantas paróquias e comunidades têm a pastoral missionária organizada, fazem o mês missionário? Quanto dinheiro destinam às Missões “ad gentes”? São quantias que nos honram ou que nos entristecem, porque irrisórias?
            d) Que valor se dá aos subsídios da Campanha Missionária, às revistas e sites missionários?

            18. Trabalhando no sertão nordestino, fiz a progressiva descoberta da dramática realidade dos pobres, a constatação dolorosa de uma Igreja, com seu clero e instituições, implantada nos centros urbanos, mas quase esquecida da periferia e da zona rural, dos setores humanos excluídos, carentes de evangelização. Esta consciência da nossa realidade era alimentada pela convivência no Regional Nordeste II com D. Helder e D. José Maria Pires, D. Manuel Pereira e D. Luis Fernandes, com Pe. Comblin, o teólogo missionário apaixonado pela Missão, e de tantos outros que, com seu exemplo me incentivaram a fazer a opção pela evangelização libertadora dos pobres, a morar numa periferia paupérrima e ali gestar a fundação da nossa Sociedade Missionária.
            19. Vinte anos após o Concílio Vaticano II, em 1985, tendo todos esses estímulos da complexa realidade eclesial brasileira, positiva e negativa, movido pela graça de Deus, procuramos organizar um grupo, para viver e trabalhar em nossas periferias pobres e entre os marginalizados, dinamizar a pastoral missionária nas Igrejas locais, promover as santas missões populares, apoiar as vocações especificamente missionárias, abertas para a Missão além-fronteiras, tais como o fizeram os padroeiros escolhidos: S. Francisco e Santa Teresinha, S. Vicente de Paulo e S. Francisco Xavier. Nasceu assim a Sociedade Missionária para a Evangelização dos Pobres, com seus institutos de vida consagrada já aprovados pela Igreja, tendo como lema o ideal de Jesus de Nazaré: “enviou-me a evangelizar os pobres e libertar os oprimidos”.
            20. Neste início de terceiro milênio do cristianismo, já são 7 bilhões os habitantes da terra, dos quais 5 bilhões ainda não acolheram Cristo Jesus como seu Senhor e Salvador e vivem fora dos horizontes visíveis da Igreja. Como diz o documento de Aparecida [n. 376]:
            O mundo espera de nossa Igreja latino-americana um compromisso mais significativo com a Missão universal em todos os Continentes. Para não cairmos na armadilha de nos fechar em nós mesmos, devemos formar-nos como discípulos missionários sem-fronteiras, dispostos a ir “à outra margem”...
            21. Vale para nós ainda plenamente a convocação de Puebla [n. 368]:
            “Finalmente chegou a hora de intensificar os serviços recíprocos entre as Igrejas particulares e de estas se projetarem para além de suas próprias fronteiras, “ad gentes”. É certo que nós próprios precisamos de missionários, mas devemos dar de nossa pobreza. Por outro lado, nossas Igrejas podem oferecer algo de original e importante: o seu sentido de salvação e libertação, a riqueza de sua religiosidade popular, a experiência das Comunidades Eclesiais de Base, a floração de seus ministérios, sua esperança e a alegria de sua fé”.
            22. O Brasil se encontra no momento histórico de dever ingressar plenamente na atividade missionária “ad gentes”. Tomando maior consciência de nossa responsabilidade eclesial e dos valores que o Espírito Santo nos concedeu, vamos compartilhar os dons que recebemos, com todas as nações da terra, no banquete da fraternidade universal, pela Missão sem-fronteiras, com as bênçãos da Senhora Aparecida. Amém!

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