CAMINHADA MISSIONÁRIA DO BRASIL:
MEMÓRIA, DESAFIOS E ESPERANÇAS
Testemunho no Congresso Missionário Nacional
[Palmas-TO, 14.07.2012]
[Padre
Gervásio F. de Queiroga - Cajazeiras - PB]
1. Foi-me surpresa ter de apresentar aqui minha vivência missionária,
resumindo, em quinze minutos, um longo andar de mais de sessenta anos. Em
termos de realização, não tenho muito o que dizer. Mas, farei memória da
caminhada missionária do Brasil, como a vivi e como a vejo, com seus desafios e
esperanças.
2. Entendo aqui Missão,
antes de tudo, no seu sentido primeiro e próprio, como a entende o Concílio
Vaticano II em Lumen Gentium e “Ad Gentes”, como a expõe a encíclica Redemptoris Missio; Missão, como envio para anunciar o Evangelho da salvação
aos que ainda não acolheram a Cristo; Missão que a Igreja realiza, através dos tempos,
como mandou Jesus: “Ide
pelo mundo inteiro, pregai o Evangelho a toda criatura; quem crer e for
batizado, será salvo”... (Mc 16, 15-16). Chamam-se
Missões outras atividades, como as missões populares, enquanto
continuam e aprofundam esta primeira evangelização.
3.
Tomei consciência da Missão “ad gentes” só no seminário, com a realização das
Campanhas Missionárias, e assinando revistas missionárias. A formação recebida dos
jesuítas, discípulos de Santo Inácio e de Francisco Xavier, e o fascínio por
Santa Teresinha, marcaram-me com espiritualidades profundamente missionárias “ad
gentes”.
4. Incisivos foram também os dez anos de estudos em Roma,
num ambiente universalista, com gente e colegas de todos os continentes, nas
ruas ou na Universidade, nas celebrações ou no esporte. A encíclica Fidei donum, em 1957, na qual Pio XII corresponsabilizou
o episcopado mundial com o anúncio do Evangelho na África, abriu para nós nova
perspectiva missionária.
5. Ainda na década de 1950, acompanhei de perto, em Roma,
a realidade dramática do após-guerra na Europa, com a perseguição religiosa nos
países comunistas; bem como, na Ásia, a tragédia das guerras e perseguições aos
missionários na China e no Vietnam. Era a abertura para o Leste e o Extremo Oriente.
Tive também a oportunidade, sendo seminarista, de breve contato com o
continente africano, passando por Dakar - Senegal, o que me acendeu a paixão
pela África e o desejo de nela realizar a vocação missionária.
6. Ordenado sacerdote em 1961, vivi com fervor a
preparação e a realização do Concílio Vaticano II. Foram banhos de catolicidade
missionária acompanhar aqueles eventos, com todos os Bispos de todos os
continentes, acolher a doutrina conciliar da corresponsabilidade eclesial e
universalidade da salvação, da abertura ao mundo dos homens e do respeito a
todas as culturas, entrar na perspectiva missionária de Lumen Gentium e “Ad Gentes”, reassumidas
depois pela Evangelii Nuntiandi de Paulo VI.
7. Durante e após o Concílio, a
Igreja do Brasil estava atenta aos desafios políticos e sociais daquele turbulento
momento histórico, às carências próprias e à necessidade de adequação aos
tempos e às diretrizes do Concílio. Ela começou então uma fase polivalente de
renovação, com a implantação da pastoral de conjunto e planejamento em todos os
níveis. Foi uma época de grandes sucessos, mas também, de sérias limitações;
sucessos e limitações que marcaram a caminhada missionária.
Destaquemos alguns pontos.
8. As missões populares, ultrapassadas nos métodos e
conteúdos pela renovação conciliar, vão sendo deixadas de lado. Junto com seu
ocaso, houve também o declínio da dimensão missionária “ad gentes”, em
contraste com a vitalidade da renovação eclesial.
9. As urgências “ad
intra” daquele período fizeram-nos permanecer na tradicional carência de
dinamismo missionário “ad extra”. Acostumados,
por mais de quatro séculos, a mamar nas tetas da grande Mãe Igreja, éramos pedintes e recebedores crônicos de recursos e
pessoal apostólico de outras nações,
recebendo, sem repartir com outras áreas do mundo, o dom da fé e o serviço da
caridade. Tal tendência acentuou-se no pós-concílio. O Brasil, com quase meio milênio de fé católica, continuava sendo ponto
de chegada, não ponto de partida da Missão.
10. Apesar da doutrina conciliar de abertura universal,
houve, pois, maior inflexão da nossa Igreja sobre si mesma, para dentro de seus
problemas e contemplação de seus sucessos de renovação, tantas vezes elogiados.
Ficamos qual adolescente no espelho, encantada pela própria beleza, mimada
pelos seus admiradores, mas, quase esquecida da realidade do universo eclesial,
pouco sensível, apesar do projeto Igrejas-Irmãs, às necessidades das outras
Igrejas e das regiões não evangelizadas. Salvaram-nos do isolamento
continental as belas realizações de Medellin e de Puebla, com influência determinante
da Igreja do Brasil. Nelas, contudo, a Missão sem-fronteiras teve pouca
relevância.
11. Viveu-se também, no pós-Concílio, uma séria
ambiguidade, sobre a natureza da Missão. Os termos “Missão”, “missões” e
“missionários”, primeiro, foram quase esquecidos, saíram de circulação; depois,
entraram na moda, usados para tudo, ampliados e inflados, quais balões de
borracha, que, a custa de se expandirem, correm o risco de explodir. Pois, se
tudo é Missão e se todos já somos missionários, parece que Missão é qualquer
coisa, já que acontece em tudo e em todo lugar. Deu-se a perda de ênfase dos
termos e o esvaziamento da própria natureza da Missão e da vocação missionária.
12. Inquietava também não termos ainda uma Sociedade
Missionária assumida pela CNBB, como seu instrumento de envio além-fronteiras e
de acompanhamento dos missionários brasileiros. No entanto, paradoxalmente,
países de baixíssima densidade católica, considerados territórios de Missão, como
Índia, Japão, Coréia, Nigéria, tinham sua Sociedade Missionária ou enviavam missionários
para o Brasil, o país com o maior número de católicos no mundo.
13. Angustiava igualmente a consciência da dívida
histórica que temos com a África, terra-mãe ancestral de tantos milhões de
brasileiros, uma de nossas matrizes culturais, a quem em retorno não demos até
agora, senão em pequena parte, o dom da fé em Cristo Salvador e o serviço da
caridade fraterna.
14. Trabalhando na CNBB, recebi, na década de 1980, o
grande impacto da descoberta da Amazônia. Que maravilha e que desafio! Mas, quão
chocante foi perceber que esta imensa região do Brasil era atendida, na sua
maior parte, por religiosos europeus e norte-americanos. Aos indígenas e ribeirinhos,
nas cidades e nas aldeias, o Evangelho era pregado e os mistérios da fé eram
celebrados com sotaque estrangeiro. Que bonito! Mas, que triste! Onde estavam
os brasileiros, para somarem seus esforços com os generosos missionários do
exterior? Isto acontecia, apesar das reuniões e documentos do nosso episcopado
sobre as questões dramáticas da Amazônia, desde julho de 1952, no Congresso Eucarístico
de Manaus, ou em Santarém, em 1972, e apesar de seus heróis e mártires, dos
exemplos e clamores de seus Pastores.
15.
Com alegria percebemos, porém, que está crescendo e se fortalecendo a
consciência missionária da Igreja no Brasil e disto é grande prova este
Congresso Missionário Nacional, em Palmas. De fato:
a) a
Amazônia já consegue sensibilizar, receber apoios, ser uma preocupação
permanente da CNBB e da CRB;
b) alguns
Regionais da CNBB e algumas dioceses já têm projetos missionários “ad gentes” e para a Amazônia;
c) as
Campanhas Missionárias vão recebendo mais adesão, ano a ano;
d) a
Infância Missionária e a Juventude Missionária já estão presentes em todo o
território nacional;
e) a
União Missionária já sensibiliza seminaristas e sacerdotes;
f) as santas missões
populares tomaram novo impulso e novas formas em todo o Brasil;
g) muitas Igrejas já fazem passos relevantes na linha da missionariedade
interna, dentro ainda de suas fronteiras, mas, já para os outros, para os
distantes, por uma evangelização libertadora, dando atenção a regiões ou
situações sócio-culturais pouco evangelizadas, como os indígenas, os quilombolas,
os camponeses e operários, os moradores de rua, os drogados, os encarcerados.
16. Servindo na CNBB, por 20 anos, acompanhei de perto os
esforços dos Padres Caietano Maiello, Franco Masserdotti, Sávio Corinaldesi,
João Panazzolo, Daniel Lagni, Ernanne Pinheiro, Stefano Raschietti e de outros
que, no inverno missionário do primeiro pós-Concílio, ou depois, não deixaram
apagar-se o facho da Missão “sem-fronteiras”, organizaram o CCM, dinamizaram as
POM e o COMINA, modernizaram a Campanha Missionária.
17. Mas, as sombras
perduram:
a) Quantas das 275 Igrejas particulares do
Brasil têm enviado e estão acompanhando membros do seu clero ou do seu laicato,
como missionários para “além-fronteiras” ou para nossa Amazônia?
b) Em quais seminários, casas de formação, comunidades
religiosas, colégios, faculdades católicas a dimensão missionária incide
realmente na formação e na prática, a campanha anual das Missões faz parte do
planejamento e se realiza com entusiasmo?
c) Quantas paróquias e comunidades têm a pastoral
missionária organizada, fazem o mês missionário? Quanto dinheiro destinam às
Missões “ad gentes”? São quantias que nos honram ou que nos entristecem, porque
irrisórias?
d) Que valor se dá aos subsídios da Campanha Missionária,
às revistas e sites missionários?
18. Trabalhando no sertão nordestino, fiz a progressiva
descoberta da dramática realidade dos pobres, a constatação dolorosa de uma
Igreja, com seu clero e instituições, implantada nos centros urbanos, mas quase
esquecida da periferia e da zona rural, dos setores humanos excluídos, carentes de evangelização. Esta
consciência da nossa realidade era alimentada pela convivência no Regional Nordeste
II com D. Helder e D. José Maria Pires, D. Manuel Pereira e D. Luis Fernandes,
com Pe. Comblin, o teólogo missionário apaixonado pela Missão, e de tantos
outros que, com seu exemplo me incentivaram a fazer a opção pela evangelização
libertadora dos pobres, a morar numa periferia paupérrima e ali gestar a
fundação da nossa Sociedade Missionária.
19. Vinte anos após o Concílio Vaticano II, em 1985,
tendo todos esses estímulos da complexa realidade eclesial brasileira, positiva
e negativa, movido pela graça de Deus, procuramos organizar um grupo, para
viver e trabalhar em nossas periferias pobres e entre os marginalizados, dinamizar
a pastoral missionária nas Igrejas locais, promover as santas missões
populares, apoiar as vocações especificamente missionárias, abertas para a Missão
além-fronteiras, tais como o fizeram os padroeiros escolhidos: S. Francisco e
Santa Teresinha, S. Vicente de Paulo e S. Francisco Xavier. Nasceu assim a Sociedade Missionária para a Evangelização
dos Pobres, com seus institutos de vida consagrada já aprovados pela
Igreja, tendo como lema o ideal de Jesus de Nazaré: “enviou-me a evangelizar os
pobres e libertar os oprimidos”.
20. Neste início de terceiro milênio do cristianismo, já são 7 bilhões os
habitantes da terra, dos quais 5 bilhões ainda não acolheram Cristo Jesus como
seu Senhor e Salvador e vivem fora dos horizontes visíveis da Igreja. Como diz
o documento de Aparecida [n. 376]:
“O mundo espera de nossa Igreja
latino-americana um compromisso mais significativo com a Missão universal em
todos os Continentes. Para não cairmos na armadilha de nos fechar em nós
mesmos, devemos formar-nos como discípulos missionários sem-fronteiras,
dispostos a ir “à outra margem”...
21. Vale para nós ainda plenamente a
convocação de Puebla [n. 368]:
“Finalmente chegou a hora de
intensificar os serviços recíprocos entre as Igrejas particulares e de estas se
projetarem para além de suas próprias fronteiras, “ad gentes”. É certo
que nós próprios precisamos de missionários, mas devemos dar de nossa pobreza.
Por outro lado, nossas Igrejas podem oferecer algo de original e importante: o
seu sentido de salvação e libertação, a riqueza de sua religiosidade popular, a
experiência das Comunidades Eclesiais de Base, a floração de seus ministérios,
sua esperança e a alegria de sua fé”.
22. O Brasil
se encontra no momento histórico de dever ingressar plenamente na atividade
missionária “ad gentes”. Tomando maior consciência
de nossa responsabilidade eclesial e dos valores que o Espírito Santo nos
concedeu, vamos compartilhar os dons que recebemos, com todas as nações da
terra, no banquete da fraternidade universal, pela Missão sem-fronteiras, com
as bênçãos da Senhora Aparecida. Amém!